Durante a edição do É Tudo Verdade de 2020, me deparei com o documentário Jair Rodrigues: Deixe que Digam, me interessei automaticamente e procurei a sinopse para saber o tom escolhido pelo diretor Rubens Rewald. Surpreendentemente, a descrição do filme tinha apenas uma linha: “Jair Rodrigues, o retrato de um artista e de um Brasil tão próximo e tão distante”. Esse resumo é minúsculo perto do tamanho da vida de um dos maiores músicos da história do país.
Finalmente entrando em cartaz nos cinemas, Jair Rodrigues: Deixe que Digam é um material primoroso repleto de imagens de arquivo que contextualizam muitas das lembranças compartilhadas pelos entrevistados. Dando corpo ao filme e servindo como base para os comentários, o documentário conta com entrevistas do próprio cantor para diferentes meios de comunicação, shows, apresentações para televisão e fotografias.
Mesmo sem ter estudado música, Jair Rodrigues tinha um ouvido impressionante e estava constantemente cantando e brincando com as canções. Um dos músicos da banda do artista comenta que ele não parava de cantar ou cantarolar alguma melodia, criando suas próprias versões de qualquer música que passava pela cabeça.
Esse valioso dom constantemente usado com brincadeira pelo artista foi fundamental para a transformação musical de Jair Rodrigues. Conhecido pela carreira no samba, uma da canções marcantes do longo repertório do cantor quase escapou das mãos do músico. Escrita por Geraldo Vandré e Théo de Barros, Disparada ganhou o Brasil na voz de Rodrigues e lhe deu visibilidade nacional — o próprio Vandré não achava que a música funcionaria com Rodrigues.
Nascido em Igarapava, Jair Rodrigues teve uma formação musical nas canções nacionais que ouvia desde pequeno, especialmente o sertanejo. Ele entendia a mensagem embutida em Disparada e era a pessoa perfeita para cantá-la, porque sua própria família viveu da terra.
O período da ditadura militar também é abordado pelos entrevistados, que deixam claro que ele foi apolítico. Mesmo que todos entendam a complexidade de ter esse posicionamento durante uma época tão extrema da nossa história, o documentário fala que o discurso político de Jair Rodrigues estavam nas músicas que falavam sobre o Brasil.
Vivemos em um tempo completamente diferente onde ser abertamente político é necessário — até fundamental. Por isso, parece fácil julgar um artista negro como Jair Rodrigues por não se posicionar em uma sociedade racista em plena ditadura. O músico Salloma Salomão resume bem essa posição ao dizer que era necessário “criar um personagem para andar pelo mundo onde os negros não andam”.
Anos depois, Jair Rodrigues foi abandonado pela mídia nacional em favor dos artistas internacionais. Para nossa vergonha, a imprensa simplesmente não estava mais interessada no que ele fazia, especialmente as rádios. Em uma dessas loucuras da vida, o músico foi meu vizinho em Cotia, cidade onde morou até o final da vida. Nunca me deparei com ele pela rua, mas o fato do músico morar perto da minha casa tinha uma aura especial, como se eu fosse uma privilegiada por ter um vizinho tão ilustre.
Jair Rodrigues: Deixe que Digam deixa claro a saudade que o músico deixou em todos que conviveram com ele. Entre comentários que exaltam sua inegável habilidade vocal e física, amigos, companheiros de profissão e familiares enaltecem o espírito desse homem que vivia sorrindo e não sabia ser triste.